A arte de Fênix Zion encontra na dança e na moda caminhos possíveis para ampliar reflexões sobre HIV/aids, racismo, LGBTfobia, dentre outras violências que marcam a existência de muitas pessoas. Fênix tem graduação em Dança, atua na Produção de Moda e é uma figura importante para a cultura Ballroom no Brasil, tendo desenvolvido uma série de ações artísticas e culturais voltadas à desconstrução de estigmas e preconceitos, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. São alguns exemplos as performances “o show não pode curar, é preciso falar”, realizada em São Paulo (2017), e “Reagente +: modo/moda e movimento”, no Festival de Artes Cênicas de Alagoas (2021). Também apresentou o experimento de moda decolonial Mod.Aid$ no 1° Encontro Bafo – Moda e Dissidências Sexuais e de Gênero, promovido pelo Laboratório Interdisciplinar de Ensino, Pesquisa e Extensão em Sexualidades (AFRODITE/UFSC).

Em entrevista exclusiva realizada pelo Coletivo Contágio, Fênix conta sobre sua trajetória artística e pessoal: a descoberta do HIV, o contato com o voguing e as balls, a importância da comunidade Ballroom nas respostas à epidemia de HIV/aids, e a urgência da discussão sobre racismo e desigualdade social nas políticas de prevenção.

A descoberta, a dança e o tratamento

No dia 17 de setembro de 2015, Fênix recebeu o resultado positivo para o HIV. A descoberta veio após o término de sua primeira e única relação homoafetiva e monogâmica. Com o impacto da notícia, não sentiu medo da morte ou da solidão, mas de outras questões: “Senti medo do anonimato e do silêncio, porque naquele momento eu estava experimentando a potência de ser um corpo negro e bixa (como me identificava) na cena.”

O que levou Fênix até o SAE (Serviço de Assistência Especializado) para fazer exames de IST’s (infecções sexualmente transmissíveis) foi a sua participação em um projeto de pesquisa sobre a dança vogue/voguing, quando estudava licenciatura em Dança.

“Li sobre o ícone Willi Ninja, dançarino autodidata, padrinho da dança vogue e que faleceu em decorrência da aids. Pude perceber a relação da epidemia e da doença na cultura/cena/comunidade Ballroom em Nova Iorque, nos Estados Unidos”, comenta Fênix. “Isso me acendeu um alerta. Iniciei imediatamente o tratamento com antirretroviral (tenofovir + lamivudina + efavirenz) e três meses depois estava indetectável.”

A partir de 2016, Fênix passa a pesquisar sobre HIV/aids e ativismo. Conhece o trabalho de Micaela Cyrino, Flip Couto, Coletivo Amem, Kako Arancibia e Loka de Efavirenz, pessoas e grupos que acolheram Fênix em sua chegada à São Paulo. Toda essa experiência acabou por resultar, em 2017, na performance “o show não pode curar, é preciso falar”, uma sátira inspirada nos musicais da Broadway e que reflete sobre a sua própria relação com os antirretrovirais.

Fênix reconhece os avanços no campo dos antirretrovirais, que proporciona a indetectabilidade do vírus em pessoas em tratamento regular. Mas alerta para a importância de reconhecer que as inúmeras desigualdades sociais, como o racismo estrutural e a pobreza no Brasil, contribuem para que as pessoas tenham dificuldades no acesso e na adesão ao tratamento que, segundo Fênix, é muito mais do que a mera ingestão de comprimidos. “Não dá para falar de indetectabilidade sem apontar, por exemplo, como atrapalham o tratamento a falta de uma alimentação adequada, água potável e acompanhamento afetivo, levando em consideração nossas individualidades”, afirma Fênix.

Outro ponto que precisa ser enfrentado é o silêncio e a discriminação que ainda cercam a pauta do HIV/aids. Para Fênix, ampliar a reflexão e a discussão sobre este assunto é uma questão não apenas de quem vive com o vírus, mas de toda a sociedade. “Sinto que o silêncio é o pior caminho na luta por direitos, porque nos obriga a ser invisíveis vivendo”, afirma. “As pessoas HIV negativas devem também se responsabilizar, até porque estamos convivendo socialmente e toda forma de discriminação deve ser enfrentada por todes.”

A força da comunidade Ballroom e a arte de Fênix Zion

A comunidade Ballroom teve uma profunda importância na trajetória de Fênix Zion. Desde o seu diagnóstico até hoje, Fênix tem estudado muito sobre o tema e desenvolvido uma série de ações que visam dar visibilidade a ele. Fênix contou ao Coletivo Contágio, em entrevista, sobre as diversas ações culturais e artísticas desenvolvidas no âmbito das Ballrooms. Vamos encerrar o papo com a fala de Fênix, artista que, sem dúvidas, tem contribuído muito para avançarmos no campo da prevenção, tratamento e reflexão sobre HIV/aids no país.

“Não posso deixar de citar a comunidade Ballroom, que me oportunizou falar e viver abertamente sendo uma pessoa vivendo com HIV, me estimulando a dar continuidade ao legado das ações afirmativas no enfrentamento a epidemia da aids, dentro dos bailes que iniciaram na cena em Nova Iorque, em parceria com Crise da Saúde dos Homens Gays (GMHC, em inglês Gay Men’s Health Crisis) – a primeira organização internacional de serviços de HIV/aids, fundada nos anos 80 e que forneceu insumos para a prevenção e defendeu as pessoas vivendo com HIV/aids. A partir de um diálogo da GMHC com membros da Ballroom, foi criada em 1990 a House of Latex e, na sequência, a Latex Ball que até hoje é o principal e anual baile da comunidade internacional, localizado no bairro do Harlem, em Nova Iorque.

Na comunidade Ballroom brasileira, embora ainda haja um silêncio das vozes que vivem com HIV/aids, temos ações como a Residência Explode (Projeto Cidade Queer, 2016) em São Paulo, idealizada por Cláudio Bueno e João Simões, e que trouxe o Legendary Icon Pony Zion para uma imersão. No evento, Flip Couto apresentou o vídeo-performance “Sangue”, provocando discussões sobre HIV/aids numa mesa com Cadu Labeija Oliveira, e finalizando a programação com a Ball Ataque. Em 2019, a Ball Anual Vera Verão, realização da Festa Amem e House of Zion, teve a primeira presença ativa do Programa Municipal de IST/Aids de São Paulo com testagem, aconselhamento e distribuição de insumos em uma programação que incluiu conversa no retorno do Legendary Icon Pony Zion. Em 2020, iniciou o Projeto Articulando, uma parceria entre a Ballroom SP com o Programa Municipal de IST/Aids, onde capacitou inicialmente (Pioneiro Félix Pimenta, Pioneira Luna Ákira e Biel Lima) agentes de prevenção. Uma outra ação importante foi a PositHIVa Ball que teve sua primeira edição em Brasília, realizada pelo Guaja Onija com a extinta House of Caliandra, e que no momento acontece de forma itinerante com apoio de Fênix Zion. A PositHIVa Ball passou pelo estado de Alagoas, em 2021, e recentemente pela Paraíba. A pretensão é que esse baile aconteça em todo o país, discutindo novos caminhos no enfrentamento à epidemia da aids, refletindo dentro dos bailes sobre os estigmas que afetam as pessoas HIV positivas da comunidade. Além dessas ações, há quatro lives mediadas por mim, no perfil do Instagram @noneballroom, com pessoas HIV+ da Ballroom brasileira. Crio também estampas na técnica de pintura expressionista “dripping” para marcar minha história e contribuição na moda decolonial atual.”


O projeto Indetectável: deuses morrem porque se renovam foi realizado com apoio do EDITAL DOS COLETIVOS – 1ª EDIÇÃO, da Coordenadoria de IST/Aids da Cidade de São Paulo.